quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A noiva cadáver.

Ela nunca sentiu nada igual.
Nunca houve dor tão forte.
Nunca vira seu coração pulsando, sangrando.
Antes imaginava um órgão belo e límpído que ao pulsar alimentava seu corpo com vida.
Qual horror e surpresa ao descobrir que ele sangra, que ele acelera e que aos olhos não é belo.

Três verões, três invernos, três primaveras e dois outonos, esses foram os ciclos que ela passou...e bastaram.
Sua vida foi devaneio. Divagação de um desejo latente.
Sonho que a mantinha sóbria...ou antes era um mar de embriaguez...estava tão perdida, tão fraca.
Seu sonho já não era claro, algo o fizera negro e sem foco.
Sem forças para tentar enxergar, fechava os olhos e dormia.
Dormia em sua loucura, chorava em sua loucura. Ficava louca com sua loucura.
Quando certa que tudo estava errado dormia novamente
Tudo era tão seu, tão feito pra si que não podia tocar nem sentir o mundo a sua volta.
Não existia matéria, nem laços.
Ouvia insultos, escárnios de vozes irreconhecíveis e também lamentos do seu âmago.
Tudo era seu. O desejo, o sonho, as verdades, as mentiras, os cenários.

Até que uma dor descomunal tomou seu peito, uma dor tão forte que a fez abrir os olhos.
E esses enxergaram o horror à sua frente.
Ela se vestira de noiva no sonho. Esperava que a promessa feita pelos Olhos fosse cumprida.
Pobre noiva estava morrendo. Seu corpo putrefava em uma lago escuro que a entorpecia de mais sonhos.
Ele cuidadosamente embebia o corpo da noiva no líquido viscoso que preenchia o lago.
Do lago a noiva bebia e dele tirava sua esperança.
Inalava a neblina densa, cheiro de jasmim, que escondia o lago.
A neblina gelava seus pulmões e secava seus olhos. Sua pupila não respondia, não havia luz o suficiente. Sua visão era turva, seu julgamento baseado em emoção.
Restos ali se deterioravam e ossos se encontravam no lago.
Nesses ossos a noiva se viu apoiada, meio fora, meio dentro do lago.

A única parte viva, que pulsava era seu coração e esse não era seu.
Fôra roubado, antes de tudo dado, oferecido em sacrifício impensado de amor.

Por vezes o coração pulsava dando-lhe a falsa sensação de vida.
Mas desta vez ele pulsou forte avisando-a.
Em choque a noiva contemplava os abutres que se aproximavam dos restos do lago e dos seus restos.
Via seu coração, mas ele não estava no seu corpo. No coração havia cicatrizes incontáveis e uma chaga que sangrava.
Pobre noiva, não entregara apenas seu corpo. Oferecera também sua alma e presenteara os Olhos com o seu próprio coração.

A noiva estava entorpecida, seus olhos se fechavam contra sua vontade. Podia sentir suas forças deixando o corpo.
Algo a consumia a sugava, deixando-a sem reação. 
Deixando-a satisfeita.

A noiva já não tinha mais vestido branco, já não carregava flores nas mãos, nunca tivera um anel no dedo ou véu que lhe cobrisse a fronte.
Mais uma pontada, como podia sentir seu coração fora do peito? Ele foi doado há três verões, três invernos, três primaveras e dois outonos atrás.
Uma pontada mais forte e desta vez os olhos se abriram. Agora ela podia ver claramente o sangue que buscava caminho entre os ossos e se derramava no lago.

Doía, doía muito. Era uma dor impessada, não conhecida, não encontrada no corpo ou apontável.
Apenas doía.
A noiva acordou e antes que seu último suspiro fosse tirado e a última gota de sangue límpido deixasse o coração que não lhe pertencia, ela emergiu do lago.
Prostrada e chorosa, decadente e humilhada. Putrefada e doente pedia apenas uma chance aos Olhos.
Por vezes olhou seu coração esmagado.
Em sua dor levava nas mãos calejadas de esforços não lembrados a única parte do seu corpo que ainda vivia.

O sonho acabou e a única coisa que lhe resta é um coração esmagado que luta para bater.
De tudo que podia oferecer esse era o mais belo, o mais puro e o mais verdadeiro presente.
Não se sabe o que ela fez, onde ela está.
É conhecido apenas seu desejo de ter novamente seu coração batendo dentro peito.




                                                               (Barros Constazzpo)

                                                                                                                                      (Foto:Graciela Iturbide)